quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Nós vamos parar ao Inferno

Nós temo-nos como relativamente boas pessoas: não roubamos, não batemos em ninguém e... penso que é tudo. Por isso, sempre tivemos como certo que, quando chegasse o derradeiro momento, e estivéssemos à frente de duas setinhas, uma a dizer «Céu», outra «Inferno», nós seguiríamos a primeira, com um hi5 no big boss lá do sítio. Hoje, já não temos tanta certeza disso. A Polónia faz de nós más pessoas. Nós já passávamos o dia a dizer mal de tooooda a gente (isto está a ficar descontrolado, acho que precisamos de ajuda especializada quando chegarmos a Portugal) o que, só por si, reduz as nossas hipóteses de entrar no cantinho dourado. Nós já não nos levantávamos quando os velhinhos decrépitos entravam no autocarro e se punham à nossa frente com aquele ar de carneiro mal morto, à espera do que nunca havia de vir. «Hm.. Acho que este está a olhar para nós. Levanta-te.» «Levanta-te tu!» «Eu não...» «Eu também não. Deixa-o estar, é para esticar as pernas.» Nós já não deixávamos ninguém passar à frente no supermercado (a menos que fosse uma grávida muito, muito prestes a dar à luz. E mesmo assim já se lhe tinha que vislumbrar a cabeça da criança.) Quando fomos à terra da Joanna, o primo dela andava na rua a recolher dinheiro para fazer não sei o quê na igreja lá do sítio. Ela deu-lhe 5zl. Nós nada. Só quando ela se voltou para nós e apontou para o puto, que estava com a latinha esticada, é que nós sacámos das carteiras, demos 1zl e dissemos «Fá-lo render!». Nós já não éramos o protótipo de boas pessoas e nunca alimentámos a esperança vã de ganhar o Nobel da Paz. Hoje, porém, atingimos outro patamar.
Pois que estávamos nós quietinhas no café mais fofinho aqui da aldeia, onde vamos nós eeeee... a empregada, quando entram umas miúdas também fofinhas e vão ao balcão. Falaram lá no dialecto delas com a empregada e, de repente, sem aviso prévio, foram-se pôr ao pé da porta, sacaram de um presépio e de um copo e começaram a cantar alegremente. Nós, apanhadas de surpresa, ficámos a olhar para elas durante dois segundos, antes de nos apercebermos que raio era aquilo. «O...que....é...que....se....está...a...passar...aqui?» sussurrei eu pelo canto da boca, com medo de fazer movimentos bruscos, não fossem elas começar também a dançar e a cuspir fogo. «Não sei, mas desconfio. Para lhes darmos dinheiro?» «DINHEIRO? Nem para mim tenho, quanto mais para andar a alimentar vícios!» «São crianças... E até estão a cantar...» «Ai a minha vida... Mas tu queres ver...?», enquanto elas acabaram a música. Chegaram-se ao pé de nós, puseram aquele ar de criança fofinha e pedinte e disseram «Ajdejnfhfjdd Jndhwiqpqmcn Hue w ednduandanian qwwe?», rematando com um sorrisinho angelical e enfiando-nos o presépio nos olhos. «Eeeer... Nós não falamos polaco...» Nada. Sorriso ensaiado e persistente. «Portanto... Se calhar... Cada uma de nós ia à sua vidinha e esquecia que nos vimos. Hm? Que nos dizem?» Desapareceram os sorrisos. Baixaram os olhos. Recolheram o presépio. Viraram costas e foram-se embora. Nós ficámos com caras de tacho, assim entre o chocado e o envergonhado. «Eu não acredito que não deste dinheiro às miúdas! Ouve, que má pessoa! Eram crianças!» «Também não te vi dar! Mas eu ia dar, se elas tivessem insistido mais um bocadinho, eu dava!» «Mas eu também ia dar, estava a pensar se tinha moedas.» «Vamos parar ao Inferno. Recusar dinheiro a crianças que, ainda por cima, cantaram é um livre-passe para o Inferno...» Silêncio... «Achas que elas passam fome?» «Não, estavam bem vestidas. Provavelmente, andam a recolher dinheiro para uma viagem da escola.» «Achas? Na rua?» «Sim, de certeza, deve ser para a viagem de final da primária. Deve ser dinheiro para irem a Lloret.» «Tens razão. Em Lloret, uma pessoa só se desgraça, ainda bem que não demos. Estamos a fazer-lhe um favor.» «É, ainda nos vão agradecer.»

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